O sono
Dois terços da
nossa vida é passada a dormir. Por vezes acho excessivo. A nossa esperança de
vida ronda os 80 anos, porém, o tempo útil resume-se a 53 anos, porque nos anos
restantes estamos a dormir. Dá vontade de não dormir mais. Teoricamente o sono
não deveria existir. Estamos aqui para viver e não para dormir e sair da
realidade.
Se pensarmos
bem, reparem, nós, seres terrestres estamos programados para dormir diariamente.
Enfrentamos a luta pela sobrevivência, estamos activos muitas horas ao longo do
dia, mas chega a noite e todos temos que obrigatoriamente recolher a um canto e
desligar. É isto, parece que transportamos uma bateria que entra em falência
diariamente sendo necessário recarregá-la, como faço com o telemóvel, todas as
noites. O grande responsável por esta nossa faceta, parece ser o nosso cérebro,
por lá passam diversos circuitos que ele faz questão de interromper,
desativando o pensamento, a consciência, condicionando o movimento e mantendo a
respiração compassada e regular. E nesse momento entra em função, o sono. Procuramos
um espaço para nos podermos encostar ou deitar e repousar a cabeça. A maioria
fecha os olhos.
Inventou-se a
almofada e os lençóis, tornando este retiro da actividade mais confortável e
mais íntimo. Parecemos um papel dentro de um envelope, entre o lençol de baixo
e o de cima. Antigamente dormia-se embrulhado em peles junto do fogo para
afugentar os animais. Quando dormimos estamos desprotegidos. Ignoramos o que se
passa à nossa volta tornando-nos frágeis e vulneráveis. Podem circular ladrões,
mamutes, morcegos, aranhas, fantasmas, anjos, demónios e nós ali, em repouso,
vulneráveis e desprotegidos... até os mosquitos percebem e aterram na nossa
pele como se de um aeroporto noturno e sem vigilância se tratasse ZZZZZZZZZZZ. Tudo
isto poderia ser uma alucinação humana, todavia, se teimarmos em não dormir, o que
acontece? Na verdade, um terço da nossa vida vai ao ar, mas o que acontece se
não dormirmos? As crianças ficam rabugentas e chegam a um ponto que abrem a
comporta das lágrimas e desatam a chorar e a gritar sem qualquer lógica. E nós
os adultos? A energia reduz-se, assim como a produtividade, o mau-humor e a
irritabilidade aceleram, ficamos cada vez mais cansados, até ao colapso, até
ficarmos tipo brinquedo escangalhado, com as peças todas, mas avariado. Ficamos
sem concentração, com a memória a falhar, assim como os reflexos, aumentando a
probabilidade de ocorrerem acidentes e adormecermos sem querer em qualquer
lugar. Os cientistas dizem que o período
mais longo que uma pessoa já conseguiu ficar sem dormir foi de onze dias,
portanto muito distante do objectivo apontado dos 27 anos.
A contradição
que existe é a seguinte, se estamos inactivos de olhos fechados, paradinhos,
sem consciência do que se passa à nossa volta, porque todos nós gostamos de
dormir? É que não se passa nada, numa boa noite de sono, no meio da escuridão e
do silêncio, apenas vai passando lentamente o vazio das horas, e os aranhas
nocturnas até se assustam com o nosso ronco e mais nada. A dormir quase não
existimos, somos possuídos pela insensibilidade dos sentidos compostos de
vazios diários, que se vão unindo através das horas de acordados, unindo
memórias e teias de pensamentos interrompidos e suspensos pelo sono.
Normalmente conseguimos identificar-nos, ou seja, aquele que adormeceu consegue
identificar-se com quem o acordou.
Diminua o
sono, e não é apenas o cérebro que sofre. Os sistemas reprodutivo, metabólico,
cardiovascular, termo-regulador e imunológico também sofrem. Talvez seja a
acção inactiva que mais benefícios nos traz. Mas se é assim tão benéfico, porque
acordamos?
Publicado em NVR, 27/10/2021
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