Um abraço da lusofonia
Já
um pouco atrasada, mas não posso deixar de referir o Prémio Camões 2019 atribuído
a Chico Buarque de Hollanda. A escolha gerou unanimidade deste lado do Atlântico,
apesar de uns murmúrios que a escolha tinha o objectivo de atingir Bolsonaro.
Se
foi ou não, não faço ideia, o nosso poeta é admirado muito antes de Bolsonáro e
este prémio faz todo o sentido. Digo “nosso” porque este senhor faz a síntese de
várias gerações de lusófonos de diversas longitudes/latitudes. Sinto-o próximo
apesar de nunca ter estado com ele. No crescimento de um grande grupo de
pessoas onde me incluo, Chico Buarque sempre foi uma referência em muitos
momentos, sobretudo na poesia, na música e nos afectos. Quando revejo a minha
vida há sons tropicais de terras zucas, que ficaram plasmados em mim e para
sempre,
“Ver
a banda passar”, assinala a minha infância…
A
minha rebeldia tem tudo a ver com:
“Oiça
um bom conselho que eu lhe dou de graça, inútil dormir que a dor não passa,
espere sentado ou você se cansa, quem espera nunca alcança…”
Nunca
o topei ao virar da esquina, tenho pena, ficaria sem jeito e cheia de vontade para
lhe pedir, faz uma música só para mim.
Um
dia Clarice Lispector disse, que Chico era “altamente gostável” e eu concordo.
Doce, terno, tímido, honesto, lúcido, melancólico, com sentido de humor, pacífico,
bonito fez a revolução das mentalidades de várias gerações com as palavras tão
peculiares e tão acertadas quando associadas à música, relatando de forma
inteligente e poética o seu amado Brasil tão multifacetado. É sobretudo um
potencial e genuíno criativo, daqueles que sofre de “vazio”, angustia-se na
procura da inspiração, recebe as ideias num flash
que há muito procurava e no final sente-se perdido quando um projecto se
conclui. A fama vem depois, como consequência, mas não influenciando em nada a
sua postura.
Por
vezes ouvi junto ao meu ouvido, palavras que tentavam conter a minha nostalgia, “morena de olhos de agua, tire os seus olhos
do mar, vem ver que a vida ainda vale, um sorriso que eu tenho para lhe dar.”
Invejo-o
por ter criado tão a bem a sua construção, desenhando o operário sem esperança:
“…Subiu a construção como se fosse
máquina, ergueu no patamar quatro paredes sólidas, tijolo com tijolo num
desenho mágico, seus olhos embotados de cimento e lágrima…”
Cada
um terá um contexto pessoal ligado a uma música sua. O Chico é a prova de como
é possível dizer as coisas proibidas e desconfortáveis, sem falar claramente
nelas, mas com mensagem inteligente, discreta e humanista que atinge em cheio,
o receptor.
O
que dizer de “tanto mar, tanto mar” a separar dois países irmãos, em que só um
está “na primavera, pá”?
E contrariando a bigamia… "Quando
teu coração suplicar, ou quando teu capricho exigir, largo mulher e filhos e de
joelhos vou te seguir"
Li
o romance Budapeste, escrito na sua maturidade, focando-me na análise da
duplicidade do amor e ganhei vontade para visitar esta cidade, para tentar
perceber como se escreve enquadrando um local, sem o conhecer, como fez Chico.
Li o meu irmão alemão e descobri alguns mistérios da sua família e relembrei alguns
da minha.
Meu
caro amigo:
“a coisa por aí está preta,
saudações para Marieta”,
esperamos por si um dia,
um abraço da lusofonia.
AQ
Publicado em NVR
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