Bem os vejo!
Tenho a
minha rua em obras desde Novembro.
Abrem
buracos, retiram alcatrão, juntam areia, juntam pedras, movimentam máquinas
para um lado e para o outro, fecham buracos, voltam a escavar os mesmos
buracos, passam os fios de nível, arrumam carretas pás e picaretas no meu
quintal, mudam a areia de sítio, impedem o acesso à minha garagem, fazem
barulho… tubos empilhados, caixas de visita, condutas de betão encostados aos
muros e a rua vai-se enchendo de terra vermelha… a ilusão de uma obra rápida,
vai dando vez a uma espectativa inqualificável, do tipo vamos ver o que dá,
depois vence o desânimo e o desespero.
Em Dezembro
compro umas botas de obra, com palmilha de aço.
O vestíbulo da
minha casa passa a ser o depósito de sapatilhas e de botas sempre cheias de
terra, que se deposita aos carreirinhos consoante a textura da sola das mesmas.
E o Natal
chega.
Os meus
convidados têm honras de tapetes enlameados e tiras de cartão colocadas desde a
rua até à porta principal. O Pai Natal estaciona o trenó em contramão na rua
paralela, pois a rena Rudolfo recusa-se a entrar na rua em obras. É um Natal
diferente para crianças e adultos e até hilariante. Não é todos os dias que
vemos os sapatos altos de tigreza da tia Elza todos enlameados e a sua estola a
varrer os montinhos de terra. Não é todos os dias que os meus convidados saem
da minha casa a cantar o Jing Bells, com as mãos cheias de presentes e metam os
pés nas poças de água, rematando com um valente “porra”.
O S. Pedro esquece-se
do mundo, arranja namorada nas redes sociais…. nunca mais fecha a torneira! A
chuva instala-se, mais a potes do que na morrinha. Passo a ter uma mini lagoa à
saída do portão e o meu jeep obriga-se a descobrir o anfíbio que existe dentro
dele e começa a sofrer do síndrome do abandono pois fica com frequência numa
rua qualquer a passar as frias noites de Inverno.
Compro umas
galochas e de guarda-chuva aberto, aproveito para fazer equilibrismo em cima do
canal das águas pluviais. Todas as manhãs faço a minha exibição. Espanto-me com
as minhas capacidades. Pareço a bailarina do circo lá a 5 metros de altura…
— Senhoras e senhores,
estimado público, vamos observar a grande equilibrista no seu momento da manhã,
no grande circo da vida.
Os vizinhos vêm
à janela, eu bem os vejo! São todos tímidos nenhum aplaude, mas lá no fundo,
invejam-me.
Os buracos
multiplicam-se, abrem-se, fecham-se voltam-se a abrir, transporta-se terra para
fazer rampas provisórias para alguém entrar ou sair de emergência das garagens.
Escava-se de novo e tapa-se outra vez. O manobrador da máquina principal
(escavadora), parece o maestro louco, sem aplausos, vira para um lado, vira
para o outro, rotação completa, por vezes passa de maestro a dançarino de hip hop…
Vou para o Reveillon
e em vez de carteira de lantejoulas, levo um saco de plástico para poder trocar
das galochas pelos sapatos e depois vice versa.
No Carnaval
visto-me de sereia - a grande sereia da Bila. Tinha mesmo que ser!
Na Páscoa
vou ao chinês e em vez de uns coelhinhos compro uns patinhos de plástico e coloco
na lagoa.
Compro outro
par de galochas, porque alguma vez eu tenho de lavar as primeiras. Estas são
vermelhas e os meus números circenses continuam ainda mais coloridos, por vezes
enriquecidos por pequenos passos de dança com pulinhos para vencer charcos e
charquinhos – desde o rombe de jambé
até ao Jeté. (Não inventei, consultei
o google brasileiro). Pontas, não, porque com galochas não dá. Penso que brevemente
poderei ensaiar o lago dos cisnes, com meia dúzia de vizinhos…
Estamos em
abril e parece que finalmente se vê uma luz ao fundo do túnel. Não sei se é luz
ou se é um comboio a avançar para mim. Em dois ou três dias e em duas fases,
pavimentam a rua toda. Uma rua, não! uma
ruela com doze moradores, que mais parece um tubo de ensaio da construção
civil. Malditos calceteiros, trabalham rápido e de cócoras, colocaram
paralelepípedos de granito, certinhos, uns atrás dos outros, rápido demais. Acabam
com parte da minha diversão. Escrevo parte, porque desconfio que ainda me irei
divertir com o tal comboio que me tentará atropelar, pois esta comédia não está
para terminar. Os meus números circenses posso faze-los numa rua perpendicular
e em todas as outras aqui do bairro, que irão passar pelos mesmos trabalhos.
Há uns anos tentavam convencer-nos que os trabalhadores
da função pública e neste caso os camarários, eram todos uns calaceiros
imprestáveis - dois trabalhavam e oito viam os dois a trabalhar - e por isso as
obras públicas eram uma desgraça. O país não saía da cepa torta, por causa do
Estado e dos seus preguiçosos e inúteis funcionários. Quando as obras públicas passaram
a ser executadas pelas empreitadas privadas, havia a grande esperança que tudo
mudaria… as empresas trabalhariam noite e dia, pois no privado não se anda a
brincar e tudo seria muito mais económico, com mais qualidade, mais rápido e mais
eficiente.
Bem os vejo!
Publicado em NVR