Entardecendo com Berlim
Talvez
fosse o último país para eu visitar. O preconceito de visitar um território
feito de histórias complicadas e de difícil digestão, onde o nazismo vingou por
um período de tempo, agredindo o mundo e a humanidade e pondo de luto a história
do século XX, possuía-me desde sempre. Os alemães não são todos iguais, passou
mais de um lustre de história, eu sei, mas Hitler falava às massas, com os seus
discursos inflamados e as massas estavam lá para o ouvir, para o aplaudir e
para o seguir. Isso é inegável.
Sabemos
que Hitler tinha consigo o génio da época da propaganda dos ideais, Joseph Goebbels defendendo que, uma “Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade”, aglutinando
multidões e alucinando coletivamente milhares de jovens em torno do nazismo e
do seu Führer,… mesmo assim eles estavam lá, aplaudiam e deixavam-se seduzir. E
não eram poucos e não desapareceram com o final da 2ª guerra. As imagens do
ditador, fazem parte da minha formação cinéfila, tal como a de muitas gerações
pós-guerra e moldaram o meu desejo de
conhecer o mundo sempre orientado para outras paragens. Era como se no mapa da
europa não existisse tal país.
A
oportunidade de visitar Berlim bateu de frente com este preconceito e foi-se
diluindo durante a minha permanência, através da evidência da história da
cidade dividida e da cidade reunificada, com os últimos 25 anos de
arquitectura contemporânea, o meu ópio
para muitas dores.
E
tudo superou as minhas expectativas.
Berlim
é uma cidade martirizada pela história, uma cidade de muitas histórias
violentas, que parece ter renascido após 1990. Evoquei a transmissão em direto
pelas televisões do mundo, do concerto memorável do grupo Pink Floid, tendo
adaptado a música The Wall, concebida alguns anos antes para outras circunstâncias.
Li em Berlim um esforço meritório para unir a cidade, transformando as
fronteiras de duas cidades forçadas a virarem as costas durante a guerra fria, num
centro de grande interesse a muitos níveis. Berlim não é uma cidade para turista
ver, é uma cidade construída para os alemães, dando resposta sempre aos seus
interesses de cidade martirizada, mas capaz de curar as suas feridas.
Olhei
ao longe a obra de Siza Vieira, Bonjour Tristesse, que me transportou para
outras histórias de outros lugares, não menos tristes e sem qualquer anúncio de
um dia bom. Visitei o memorial do Holocausto, projeto de Eisenman, que consta
de uma escultura gigante feita de blocos que, em planta, são todos rectângulos
cujas dimensões me evocam sepulturas implantadas ordenadamente, mas cuja
volumetria causa sensações de labirinto, de desconforto, de confusão,… Visitei
também Daniel Libeskind… e o resto foi a festa da arquitectura, vidro e vidro,
aço e vidro, transparências e reflexos, rua sim, rua sim, praça sim praça sim.
Num
sábado ao fim do dia, sentei-me olhando as pessoas aproveitando os últimos
raios solares, deitadas pacificamente na relva da praça da catedral, no chão
onde Hitler proferiu um dos seus discursos mais exuberantes da história,
Lustgarten. Peguei no telemóvel e escrevi:
“19h43m num cruzamento de várias
realidades e sensibilidades, com a história - um relvado, uma fonte, um rio, uma
música clássica voando em sintonia com a brisa semi-nocturna, o museu de artes como
cenário de lusco-fusco a catedral à sua direita. Relaxamento de pessoas que
parecem pacíficas, numa urbanidade multicultural e multicolor, que pretende
sossegar consciências, através do seu desenho urbano planeado, numa epopeia de
raios laranja dum pôr-de-sol germânico. Talvez nunca mais estejamos comungantes
deste espaço, talvez este seja um momento único na vida de todos, numa letargia
de cansaço provocado por muitos e muitos quilómetros a percorrer e a conhecer
esta Berlim feita de tudos e de nadas. Talvez não nos encontremos jamais, mas
estamos aqui hoje, neste relvado simbólico, entardecendo com Berlim. Um frontão
grego e colunas dóricas a dialogar com capitéis coríntios, afirmando modelos
provenientes da Grécia antiga, grande berço da arquitectura, da filosofia e da
democracia, permanente do orgulho dos conceitos de humanismo do ocidente, que
afinal, não sei se todos teremos. O sol põe-se, vai iluminar outras urbanidades
do mundo e para onde vai cada um de nós?”
Publicado em NVR
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