24 março, 2007

Persistência da memória


As fases de sofrimento de um artista normalmente dão origem a grandes obras, a grandes escapes e concretizações de criatividade.
Dali, em ruptura com os valores do pai, inicia uma fase inigualável.

“Persistência da memória”, a pintura talvez mais conhecida de Dali, a origem da sua fortuna, foi executada, num clima de desespero, de angústia, após ter sido expulso da casa do pai. Dali escandalizava o pai e assumia atitudes de blasfémia em relação à mãe já falecida – um processo de auto-afirmação complexo, tortuoso e sofrido.

A pintura do contraste entre o "mole e o duro".

Os rochedos do cabo de Creus, fazem parte do fundo do enquadramento, o local exacto onde os Pirinéus vem morrer no mediterrâneo - local que inspirou outros artistas, Gaudi, por exemplo.
As formas, as sombras dos rochedos, metamorfoses continuadas de quem os observa, mediante o movimento de aproximação ou afastamento, interiorizadas e adaptam-se ao subconsciente do observador, que olha de novo e já imagina outras formas, outros conteúdos, outras memórias e outras realidades.
Este exercício imaginativo e criativo está presente sem dúvida em Dali e em toda a obra escultórica de Gaudi, tornando-se até lúdico, este jogo granítico/sensorial.

O mole representado pelos três relógios disformes, resultantes de uma noite de enxaqueca depois de um jantar rematado por um Camembert, inicia a reflexão contrastante entre a dureza dos rochedos e o mole, o super mole do queijo fluido.
O que representarão os relógios? Sabemos donde surgiu a inspiração, mas qual será o seu verdadeiro significado numa noite de enxaqueca?
... A tentativa ou a convicção de escapar ao controle do tempo?
... a possibilidade de o dobrar consoante o nosso desejo?
… um tempo que tanto é passado como é presente, que tanto é sonho como é realidade?
…o tempo flexível como testemunha do adormecimento do pintor?
… os vários tempos que só sobrevivem quando relacionados com alguma coisa?
O tempo é representado como entidade completamente subjectiva. Um quarto relógio fechado ao onírico, será um tempo morto em putrefacção, invadido pelas formigas, um tempo desinteressado pela dialéctica com o rochedo, com o mar e com Dali? Penso que este relógio estará relacionado com a figura paterna.

Entendo os relógios,... o mole… mas como explicar? O mole sinónimo do versátil do macio, do extravagante, do feminino.

O próprio Dali fica auto-retratado nesta pintura, como figura mole também adormecida na areia, sem boca, mas com língua que lhe sai do nariz.
O contraste entre opostos é acentuado pela relação entre o rigor e o detalhe da representação ao nível das formas, e as dimensões que não sendo reais permitem a deformação (relógios e o rosto de Dali) e ainda pelo colorido, rico e variado, mas que divide a tela em duas partes desiguais no entanto harmoniosas. Na pintura domina a horizontalidade, que se cruza com outra direcção ortogonal representada pela oliveira.

Quantos já sonharam num meio integrado no sem tempo, e que acaba por persistir apenas na nossa memória? Mas afinal porque Dali pintou os ponteiros dos relógios?

Dali achou a pintura extraordinária, mas imprópria para venda. Engano mostruoso, o quadro foi logo vendido, e passou por vários mãos até chegar ao Museum of Modern Art de NY.

6 comentários:

Anónimo disse...

UAUUUUUU!!!!!
volto mais tarde para reflectir e admirar
Inês

Anónimo disse...

Sim! Um ser dedicado à Arte, à mais profunda Arte, delineando contornos, aspectos, objectos impessoais e pessoais confundem-se no tempo, no bater cardáco, no bater das horas, nos instantes mágicos da sua concepção.
Sobre Dali sabia pouco. Fiquei a conhecer.
O teu texto, a tua narrativa, é surpreendente. Agora, percebo, percebo só um pouquinho em ti, o que sentes, o que vives, o talento, a Arte que vai em ti.
Eu, compreendo a angústia, a impaciência, a inconstante percepção das coisas, dos sentimentos e das emoções que, com humildade, porque nunca chegaria tão longe, vão na tua forma de Ser. Na tua forma de pensar. Na tua forma de agir.
Admirável! Arrebator. Delicioso.
Parabéns pelo teu talento e pelo que és, só comparável a alguma divindade.
Como li algures aqui, num comentário curto, mas significativo, que passar neste espaço é obrigatório.
Nunca me esquecerei de o fazer, acredita!
Beijos de admiração e espanto.
pena gil

Anónimo disse...

É um jogo de contrastes: rochas, relógios moles (marcando horas diferentes), luz e sombra, realidade e sonho, razão e paradoxo. Os relógios, traduzem objectivamente o tempo( consciência=racionalidade). Dali retira os objectos do seu contexto real(como por exemplo, um relógio pendurado num ramo seco de uma árvore),tentando libertar-se da racionalidade e uma procura do abstracto .A sombra tem uma força poderosa neste quadro. Está em movimento.
É um retrato da complexidade da mente humana, a vida e a morte, o tempo é medido e sentido, onde a fantasia expulsa o que é real, e no fim disto tudo a memória continua a existir.

"Os criadores não são pessoas fáceis, porque assumem papeis de diferentes personagens, emocionalmente diferentes, tornando o artista ( criador )uma pessoa emocionalmente desiquilibrada." ( registo esta frase dita hoje na TV por uma actriz).
Helena Borralho

Anónimo disse...

Esqueci-me de dizer adorei o teu artigo Anabela Quelhas

Helena Borralho

Anabela Quelhas disse...

Nesta pintura de Dali, sempre me fez confusão, o Cabo de Creus ser pintado do lado direito... eu não conheço em pormenor aquela zona geográfica, mas parece-me que sendo os Pirinéus um dos limites geograficos da Catalunha, estes deveriam surgir do lado esquerdo do observador.Ainda não encontrei qualquer alusão a este pormenor. Enfim!!!
Picuinhices!!!!!

Anónimo disse...

Amiga Helena Borralho:
Provou a toda a gente, com o seu comentário, um talento invejável e enorme. Revela conhecimentos e um inegável poder de comunicação e expressão que só os grandes escritores possuem. Admirável! Espectacular! Surpreendente! Fiquei atónito, perplexo, enquanto os meus olhos iam seguindo as brilhantes palavras, as deslumbrantes frases construídas com enorme sensatez e grande poder criativo. Queria que aqui ficasse patente que a admiro e nutro pelo fluír da sua escrita grande atenção e enorme estima. Escreve muito bem. Deve ter um cérebro de ouro. Ideias perfeitas, sóbrias, harmoniosas e, de certeza, bem-estar nelas que parecem cintilar, brilhar a cada instante. Deve ser uma pessoa boa e interpretar actos impensados ou mal construidos pelas pessoas uma paciência e uma tolerância de compreender e saber perdoar. Se, há tempos atrás, fiz algo de errado, quero que me desculpe. Não faço mal a ninguém. Pelo contrário, anseio fazer cada ser humano deste planeta conturbado em que vivemos, felizes e todos, mas todos, os seus habitantes de bem consigo próprio e com os seus. Sou Pai. Sou marido. Sou amigo. Sou um lutador da vida. Sou Professor. Defendo ideais e princípios de uma boa cidadania e convivência social dirigidos para a educação das atitudes e dos actos correctos, rumo à felicidade que queremos para nós e para todos os habitantes deste lugar pequenino chamado Portugal. Penso que comecei agora a perceber a beleza imensa das suas ideias, do pensamento deslumbrante que possuí e transforma de uma forma perfeita e entendedora em beleza, quase por magia. Pela magia da sua escrita. Também sou um Professor atento e dedicado aos seus alunos. O meu sonho era que fossem válidos, utéis, participantes e repletos de alegria de viver, integrados mais tarde na sociedade. Desculpe, qualquer coisa menos boa que tenha proferido, mas foi, talvez, impensada e injusta. Desde já o meu pedido de desculpa.
Sempre a estimá-la e a considerá-la, aguardando com ansiedade pelos seus brilhantes comentários e pela sua encantadora escrita.
Um professor ignorado que ama tudo o que é feito de crianças em sua volta.
pena gil