Faz de conta
Faz de conta que ainda
estamos no dia 24 de Abril de 1974.
Desconheço o que é a
democracia, vivo num país fechado na ausência de vários direitos, que eu vou
percebendo que fazem falta numa sociedade feliz. Sou jovem com mente sã, que se
vai abrindo ao mundo e colocando diversas interrogações sobre o que se passa à minha
volta.
Conheço apenas 3
personalidades políticas, Oliveira Salazar, Américo Tomás e recentemente
Marcelo Caetano, através do jornal, dos retratos pendurados nas paredes de todas
as salas de aula da escola, da televisão de Portugal Continental e do cinema.
Quando vou ao cinema, antes dos filmes exibem registos de propaganda ideológica
fascista, que consiste em registos de inaugurações, cerimónias oficiais, pequenos
discursos e festas que cimentam tradições e valores nacionais do Estado Novo, pretendendo
vincar na mente de todos, que vivemos num país perfeito; por vezes, são
repetidos ao longo de meses, para melhor se alojarem na cabeça dos cidadãos.
Este país é feito de
gente muito rica e de muitos pobres, emigrantes clandestinos, exilados,
analfabetos, presos políticos, anjinhos que vão precocemente para o Céu e uma
guerra de muitas frentes. É o Casimiro, a Joaquina, o Afonso, o Gervásio, as
diversas Marias e todos os outros anónimos que vivem neste Portugal e sobre os
quais não restará História, a dividir uma sardinha para dois ou três, à espera
que a natureza não os penalize com chuvas, trovoadas e calor fora de época,
para poderem sobreviver com menos fome, sendo explorados em fábricas onde não
se distribuem nunca, mais-valias e onde a esperança de vida é curta.
Constroem-se
diáriamente muitos lutos de viúvas, pais sem filhos e órfãos, que veem os seus
regressarem de uma guerra, dentro de caixões, branqueada por uma propaganda incansável
e eficaz, de um Portugal grandioso do século XV e desligado do resto do mundo –
orgulhosamente sós.
No cinema, a propaganda
dura 30 minutos, e se bem me recordo, designa-se por ACTUALIDADES, onde
desfilam as estrelas do regime mais os padres, bispos e cardeais, senhores de
fato e gravata, senhoras exibindo joias e cabelo armado, e as altas patentes
militares a colocar medalhas ao peito dos "heróis". Exalta-se um
regime protector, em que as mulheres devem servir os homens e os filhos, para
que se tornem famílias perfeitas. Deus e a Pátria divulgam-se como entidades gémeas,
de igual valor, indiscutivelmente superiores a quem todos devem servir
cegamente. Apesar de Salazar ser um pouco avesso ao cinema, encontrou aqui um
meio de propaganda eficaz e controlada, que chega ao consumidor em qualquer parte
do território português, sempre igual e evidenciando um Estado forte por quem
todos se podem orgulhar – não passam as buscas da PIDE, não passam as torturas
que inferem aos presos políticos, não passam os livros censurados, não passam
cenas de pobreza, não passam a fome e a vida dura dos pescadores, operários e camponeses.
Faz de conta que é dia
24, e ninguém pode ter opinião própria, crítica e informada e assim reina a
propaganda referida, muito inspirada em Hitler e Mussolini. Qualquer informação
fora desta esquadria apertada, é censurada e se possível eliminada com forte
penalização para o autor. Quanto maior é a ignorância de um povo, mais fácil é
de governar. Com esta censura todas as mentiras passam a ser verdades. Homens e
mulheres vivem nesta caverna, iludidos com sombras inquietantes, orando a Deus
pelo seu martírio e, ao mesmo tempo, agradecendo àqueles que orientam este
país, cada vez mais doente e afastado dos países mais desenvolvidos. A maioria
pensa pequenino, para que os opressores pensem em grande, sem olhar a meios
para atingir os seus fins, porém, felizmente “não há machado que corte, a raiz
ao pensamento” (Manuel Freire) de alguns.
Publicado em NVR em 24/04/2024
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