Aguardo pelo Messias
Copiei esta
imagem da internet numa rede social. Não sei quem é o autor, alguém copiou de
alguém e eu copei descaradamente a seguir, mas sei com certeza que a sua
profissão é ser professor. Só um professor entende esta imagem que é um
verdadeiro pedido por socorro.
Um professor para
além ensinar e tentar educar (escrevo “tentar”, porque a educação adquire-se em
casa), lida com uma rede de problemas de grande complexidade que é o reflexo da
nossa sociedade, o bom e o mau, dispondo de poucos recursos e reinventando
estratégias para ser bem-sucedido, através de práticas resultantes de um
trabalho intrínseco à arte de ensinar e em paralelo, que consta em planear,
articular, partilhar, avaliar, acompanhar, reflectir. Até aqui, tudo bem… mas
exige-se algo verdadeiramente esgotante, sem grande visibilidade e utilidade, o
registo, a prova, a evidência em como fez e em como desempenhou bem o seu papel,
com se ensinar se convertesse num processo jurídico onde é necessário reunir
provas consistentes para exibir no tribunal. Ao professor não basta esgotar-se,
falando alto para se fazer ouvir, não basta interromper o seu raciocínio de
cinco em cinco minutos, para mandar calar, para evitar confusão na sala, para captar
a atenção dos distraídos, para dar autorização para ir ao WC, para… para…, não
basta fingir que não ouve comentários desagradáveis e rudes proferidos a baixa
voz, não basta estimular aqueles que de facto querem aprender, não basta
proteger os tímidos e os mais sensíveis, não basta refrear os mais rebeldes,
não basta servir de mãe, de pai, de psicólogo, de sociólogo, de pedagogo, de
enfermeiro, de mediador de conflitos, de amigo e de cúmplice, não basta cuidar
da socialização e das interações em grupo, não basta! o professor ainda deve ser
uma máquina de produção de documentos supérfluos, teoricamente correctos e
necessários, mas que na prática adormecem e apodrecem nos dossiers, reais ou
digitais.
Os documentos
são imensos e agora felizmente já é tudo informatizado, reduzindo substancialmente
a quantidade de papel - as árvores agradecem. A grande papelada que a imagem
refere, já é uma papelada digital, mas que não deixa de ser uma catrafiada de
documentos distribuídos por pastas, subpastas e mini pastas que carregamos no
computador pessoal e que de pouco serve.
As salas dos
professores, onde se respirava alguma tranquilidade entre uma aula e outra, onde
todos carregavam energias para ir à luta, foram transformadas em algo parecido com
um call center, onde os professores
se sentam aproveitando o tempo para teclar desesperadamente documentos para
entregar aos coordenadores, aos diretores, ou aos encarregados de educação, olhando
apenas para os monitores, alucinados com as evidências da sua competência.
Documentos que ninguém mais lerá. Eventualmente se houver uma queixa ou uma
reclamação, todos terão informação escrita para exibir, ninguém lerá, mas
importa ter. Quem tem, é competente, quem não tem é um calaceiro incompetente.
Não interessa se o professor tem raciocínio, criatividade, memória, experiência,
se reflete sobre os desafios do dia-a-dia e tem a arte de gerar empatias com os
alunos, tentando dar a melhor resposta e o melhor de si. O que interessa é ter
muitos documentos para exibir e em ordem. Quem lê os documentos? Quem cruza a
informação? Poucos ou ninguém.
É necessário
ter papelada para mostrar e manter os professores ocupados. Porque os
professores são duma raça, que gosta de
praia e de piqueniques em todas as estações do ano e são os campeões das pontes
e das esplanadas. Ai do professor que dá uma negativa, se não tiver tudo
bem documentado e justificado! Ao aluno não basta não estudar, perturbar as
aulas, ter testes negativos e estar a marimbar-se para escola e para o cota do
prof. São necessárias análises, reflexões, estratégias, objectivos, articulações,
partilhas, reforços positivos, diálogos assertivos, motivações personalizadas,
trabalho colaborativo, comunicações aos DTs e aos encarregados de educação… e
não basta praticar-se é necessário escrever-se e repetir-se em diversos
documentos. E cada caso é um caso, feito de domínios sócio-afectivo, cognitivo
e psico-motor… agora multipliquem por 170 casos/professor, cada um com pai e
mãe, ambos a achar que o professor tem
boa vida, é um baldas, é um verdadeiro vilão cheio de preguiça e incompetência,
lerdo das ideias, não faz nada, passa a vida em férias e faz greves durante o
ano sempre em momentos errados, e ainda por cima faz queixa dos seus queridos e
adorados filhinhos que são sempre uns anjinhos e as más companhias é que lixam
tudo (esta é a imagem que a sociedade infelizmente resolveu construir nos
últimos anos sobre os professores). Como pais brilhantes, não lhes ensinam que se diz com licença, faz favor, obrigado, bom
dia e até amanhã, que não se dizem palavrões e que é obrigatório respeitar o
outro.
Mas voltando à
papelada… no meu tempo (não gosto da expressão, mas por vezes é imperiosa),
quando na pauta estava escrito 10 valores queria dizer que passei à rasquinha,
e ia ter os meus pais de trombas por umas semanas, quando tinha 8 valores
queria dizer que tinha andado a vadiar o 1º período e que os meus pais iriam
suspender tudo o que me desse prazer até eu recuperar, e quando tinha 14
valores, eu respirava de alívio, mas os meus pais ainda iriam perguntar porque
não tirei melhor nota e quando tinha 17 valores, finalmente os meus pais sorriam.
Numa escala de zero a vinte, com os números alinhados numa pauta, eu sabia
exactamente onde tinha acertado, onde tinha errado, e os meus pais não
precisavam de mais nenhuma explicação ou esclarecimento.
Ai, ai
papelada… aguardo com certa urgência pelo Messias do ensino, que entenda quão nobre
é a profissão que prepara a sociedade do futuro. Devolvam-nos o tempo que é
necessário para nos despirmos dos problemas da escola, o tempo para reciclar
informação, o tempo para regenerar a mente e a paciência, o tempo para
actualizar conhecimento. Devolvam-nos a dignidade, pois os nossos alunos são os
vossos filhos!
Anabela Quelhas
Publicado em NVR a 5/07/2017