Quantos
braços terá o mundo?
Tenho dificuldade em ser
quem não sou, procurando-me entre contradições e o mais onírico dos meus
sonhos. Destruo os muros, as vedações de arame farpado e outras barreiras que
me são incómodas, que me condicionam e descubro novos horizontes, fugindo de
mim… fugindo de quem sou na verdade, vendo-me à distância e aproximando-me
novamente, adopto fantasmas, apuro visões, reforço convicções arquivadas ao
longo dos anos, redescubro outras que nunca tive, num ensaio dialéctico, que nunca
é gratuito.
Neste meu lirismo aprendente tenho dificuldade de ser quem
não sou.
Por vezes apresento-me outras personagens candidatas a mim,
para adopção, para aluguer temporário ou para residência permanente. Comparo-as
comigo, desenhando-lhe simetrias e translações, criando passaportes de vida que
no final não consigo utilizar. Crio sombras de chão e de vento, produzo
lágrimas de particulares ou de exageros, gerando energia crítica sobre mim,
sobre os outros e sobre o mundo, que se torna essencial para minha lucidez. A
sensibilidade e a rigidez articulam-se numa assimilação perfeita de ocasião. A
maleabilidade e o primarismo ora dão as mãos, ora se tangenciam sem rumo. A
doçura desconhecida, resgato-a de locais distantes no espaço e no tempo. Aceito
desafios, sou curiosa, ousada e atrevida, na eliminação de fronteiras, sem
pensar muito bem, onde é o meu lugar ou se tenho algum lugar. De onde sou? Questiono-me.
Sou de um mundo com raízes diversas e plurais nunca adivinhando o meu destino. Não
sei se sou terra, se sou fogo, se sou ar, terei uma amálgama de tudo diluída em
águas serenamente superficiais e revoltamente profundas, onde navego solitária
sem grandes tragédias.
Mas, continuo com dificuldade em ser quem não sou.
Só tenho comigo as empatias, riqueza acumulada pelos amigos
verdadeiros, alguns que mal conheço, perdidos neste mundo e nos outros que se
adivinham próximos, sendo sempre eu em todos os lugares, pacíficos ou não. Não
sei beneficiar das crenças que facilitam a vida e a resolução das adversidades,
que nos limitam a consciência todos os dias.
Quantos braços terá o mundo, para me acolher nesta
insatisfação diversa e sempre renovada que não se deixa tolher, nem moldar por
qualquer natureza?
In “Ensaios de escrita, um
projecto sempre adiado” Anabela Quelhas
Publicado em NVR
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