No Laró do Natal!
Se há coisa
que eu gosto de fazer é andar no “laró”- todos os motivos são bons, todas as
oportunidades são únicas e irrepetíveis, invento razões mais ou menos bem
elaboradas - portanto identifiquei-me de imediato com este livro do meu amigo
António Caseiro Marques.
Não sou dos
lugares onde permaneço quase uma vida, apenas porque quem nasceu na savana
africana, se orientou através do Cruzeiro do Sul e sentiu “a linha recta que é
curva, lá para os lados da intersecção do Zulmarinho com o rio Kuanza” (inspiração
J.C. Carranca), nunca mais será de sítio algum, entrando para o grande rol dos
órfãos de terra, dos desterrados, dos angustiados ansiosos, dos cidadãos do
mundo eternamente solitários e fora de órbita.
(escrevi solitários, não escrevi sozinhos)
Não sou uma
caminheira de montanha, sou uma andarilha urbana, mas percebo o apelo à
montanha que nos oferece esta obra. Essa massa gigantesca e telúrica, que
existe desde sempre e permanece silenciosa, geologicamente supostamente estática
(nada é estático! J), concebida sabe-se lá por quem, estratificada em
camadas, algumas ainda desconhecidas, veste-se superficialmente de formas
policromadas diversificadas, belas, sempre renovadas, em constante mutação, estabelecendo
um diálogo profundo, intimista e misterioso, com o António, mexendo com ele,
tornando-o mais humano, mais sábio e mais divertido. O maciço, estrada irregular
de gigantes, sem oceano à vista, que se converte no mar do nosso olhar, que nos
espera sempre e não pára de nos surpreender, toca-o de sobremaneira como beirão
de Carapito, de coração enorme, generoso, onde cabem muitos e outros lugares.
Este livro,
não o entendo como livro dos caminheiros de montanha, mas sim, um registo de
sentires de quem gosta e investe no “laró” e na sua filosofia. Sim, porque o “laró”
tem toda uma filosofia e uma ciência intrínsecas. O dicionário diz-nos que “laró”
é sinónimo de não fazer nada, descanso, vida ociosa, sem trabalho…
… quem
acredita nisto?
Quem anda no
“laró” não descansa! Abandona o sofá e os chinelos, mete-se por caminhos
íngremes, cultiva calos nos pés, vive tudo menos o ócio… Andar no “laró” exige
preparação física, agilidade mental, racionalidade, capacidade de decisão e sensibilidade
para realizar narrativas afectuosas para com o sítio e sobre os sítios - perfil
exclusivo dos desassossegados que procuram saber sempre mais sobre este planeta
azul. Deprimidos, acomodados, ociosos, conformados com a desgraça e de mal com
a vida, nunca entenderão o matiz destes seres humanos.
E sobre o sítio….
“Começa-se
sempre pelo sítio, quando se pretende contar algo contextualizado num lugar -
aquela cruzinha que se faz no mapa para marcar um espaço, duas pequenas linhas
concorrentes, que focam a nossa atenção, dividindo o sitio do resto do universo.
O sítio será,
• o espaço de
permanência dos que habitam, a plataforma geológica, que sedentarizou aqueles
seres humanos.
• o
território feito de vários lugares que permanece de geração em geração, fazendo
a simbiose ente o passado e presente e onde os seus habitantes deixam a marca
das suas existências.
• o
testemunho sempre renovável da história, das vivências e dos sonhos dos Homens.”
In “O fato que nunca vestimos” de Anabela Quelhas
…
este induz-nos a evocar os nossos próprios sentires de cada sitio que já olhámos,
interpretámos e reservámos na nossa memória.
Faltou um
mapa desenhado pelo punho do autor – o mapa do “laró” renovado e aumentado.
Para
surpresa minha, verifiquei que entrei numa das suas descrições, o que me enche
de orgulho, já que como verdadeira andarilha, gosto da partilha daquilo que
conheço e sei, ajudando os amigos a sonhar comigo, replicando e multiplicando
aquilo a que sou sensível.
Para
finalizar recordo e configuro o verdeiro amor que este senhor tem por Lisboa:
(em véspera de Natal,
eu cheirando a aromas de pinhões, passas e canela, com a colher de pau numa mão
e telemóvel na outra, confeccionando algo saboroso, que todos comem e choram
por mais, no sítio mais perigoso do mundo: a minha cozinha…, de atenção recortada
entre uma mesa geometricamente decorada, que acolheria duas dezenas de pessoas
para consoar, a porta de entrada para a abrir, a campainha não parando de
tocar, as gargalhadas dos mais pequenos já no quintal perguntando pelo Pai
Natal, o polvo a fumegar, diversos pratos já repletos de manjares natalícios
espalhados entre a sala e a cozinha … )
- Estouuu? como vai minha amiga?!!!! (voz inconfundível de alguém
não ocioso e bem disposto, que sabe bem ouvir) Estou aqui junto ao Tejo, a
olhar o Cais das Colunas, vendo as iluminações de Natal e lembrei-me de lhe
ligar… sabe eu gosto muito de Lisboa, estudei aqui, volto sempre que posso… o
rio, o Mar da Palha, a baixa pombalina, Alfama… réu catrapéu, patati, patatá, blá, blá, blá…
… no Laró do Natal!
(que inveja! Inveja mesmo! no bom e no mau sentido)
(há poucos minutos chega uma mensagem…)
- Vamos buscar o Francisco. Só regressamos no domingo. Mande
fotos de ontem. Ob bjs CM
(oh mais “laró”, ele não pára!)
Anabela Quelhas
Publicado em NVR