ANITA E O APAGÃO
Levantei-me já tarde e
a más horas, a transbordar ócio desta vida pasmada, que acontece entre as obras
de Codessais e os cafés cheios de jovens universitários, onde comem snacks e
bebem cerveja.
Descobri que não tinha electricidade,
porque a máquina do café manifestou-se em greve e a torradeira parecia a bela
adormecida. Liguei o telemóvel, acedi a um post de um amigo segurando um
transístor. Pensei: velharias! Olhei para o meu relógio eléctrico e vi que este
estacionou os ponteiros às 11:33. Mau maria, afinal não era um apagãozito à
Bila Real, quando alguém
mexe na conduta eléctrica e vai tudo pró galheiro e que dura apenas uns minutos.
Olhei pela janela e vi o meu vizinho a tentar fazer fogo à moda antiga com duas
pedras. Então que se passa? Perguntei. Fiquei alarmada, disse-me que já não
havia fósforos na mercearia da esquina, que já estava aquela confusão nos
supermercados, a luta pelos rolos de papel higiénico. Ups! afinal era um ataque
da Rússia transformado em apagão total. Foi aviso da protecção civil?
Perguntei. Não, soube pelo tio da namorada da minha filha, disse ele.
Atirei-lhe com uma caixa de fósforos que tinha guardada há anos, tipo relíquia,
adquirida antes dos isqueiros de pilhas.
- Sirva-se, mas não
abuse, para durar até ao Verão.
Todos os outros
vizinhos ou ainda não estavam em casa, ou faziam de conta que não estavam para
não dar abertura a qualquer partilha. O vírus do papel higiénico e a bactéria
das latas de atum tornam as pessoas egoístas.
Cadê do kit de
emergência? Só tinha o kit dos pensos rápidos, tesoura, betadine e gaze. Hummm
falhei!
Ora, banhos foram à
vida, frigorífico e congelador também, cozinhar, nada, máquina de lavar roupa,
nem pensar, portão da garagem bloqueado. Tomei banho com 3 toalhetes dodot no
esquema, cabeça, tronco e membros.
Tinha sopas
instantâneas, segui os procedimentos do meu vizinho. Dentro do tanque de cimento para lavar
roupa, arranjei um processo para fazer uma fogueirinha para aquecer
água. Não tinha carvão. Apelei para a imaginação. Utilizei a publicidade do Lidl
que estava no correio, um dos livros do MST e ainda uma vela com forma de pai
natal que deitava umas fagulhinhas tipo foguete. Já deu para fazer a sopa. Percebi que teria que me governar com os
alimentos que estavam em casa, o problema era cozinhá-los.
Comecei a alinhar as
conservas que restaram da pandemia. Nem quis ver datas de validade. Quando a
fome apertasse, até as aloé veras marchariam e os caracóis do quintal…
Era necessário arranjar
combustível para queimar. Juntei as fotos dos ex-namorados, as cartas da tia
Elza que continua a escrever-me da forma tradicional, um xaile do Chinês,
recibos do supermercado, tinha vários… agora compra-se meia dúzia de produtos e
sai da máquina um lençol de papel. Deixei para depois as cadernetas do Montepio,
umas sandaletes brasileiras, as gravatas do falecido e os livros de culinária,
que também não me serviriam para mais nada.
Percebi que o meu
telemóvel estava sem carga, lembrei-me de umas experiências que se faziam na
escola, para motivar os alunos para as energias alternativas, utilizando
batatas e uma moeda, tentei construir um batatómetro, mas não resultou. Fiquei
sem duas batatas e a consciência do fracasso.
Decidi sair de casa, e
dar uma volta a pé, para ver se haveria algum restaurante a servir refeições.
Fui logo cravada por dois estudantes que não tinham numerário para comer. Lá
foi uma vintena.
Andei a ver por onde me
poderia escapar para o rio, quando viessem os Russos e regressei a casa. E como
se entra em casa com o portão do quintal que só abre manualmente por dentro?
Favor paga-se com
favor, o meu vizinho… também já não estava em casa, fez uma segunda tentativa para
comprar conservas e rolos papel de cozinha. Sentei-me no chão até ele regressar
e emprestou-me uma cadeira para eu subir e saltar o muro. Decidi barricar todas
as aberturas para enfrentar a noite escura, imprevisível e possíveis invasores.
Arrastei uma cómoda e a máquina de lavar para travar as portas e escondi as
conservas. Considerei converter, no dia seguinte, uma estante de bambu, em
combustível… sim, daquelas que tentam fazer a espargata mal se carregam com
meia dúzia de livros e que adquiri num surto de consumismo impensado.
Já tinha tudo
organizado: as velas e as pilhas em cima de uma mesa, a faca maior da cozinha,
um jarrão de cristal d’arques, bem pesado, que herdei do tio Anselmo, o rolo da
massa e uma esfregona, em cima do psiché, e com os rolos de papel higiénico,
cobri os vãos das 4 janelas cá de casa, para segurarem as balas.
Faltava decidir o que
fazer com tanto brócolo que habitava no meu congelador há vários meses e os
pasteis de bacalhau que certamente os iria comer crus nas próximas horas, sem
fritura… ,
…quando o apagão se
desapagou, eram 20 horas.
E afinal não foram os
russos, mas os chineses, que já são donos disto tudo.
Publicado em NVR 07|05|2025
5 comentários:
Adoro quando a senhora me mata de riso logo de manhã. A imaginação da sua Anita é incrível.
Beijinhos 😘 sua. Adília.
😄👏🏼
oLÁ Já valeu a pena escrever esse delírio. Sorrir é bom, rir ainda é melhor. Sabe que gosto de levar a vida com humor. Saudades da sua gargalhada. Beijinho
obg
Sempre bem humorada ILY
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