Nunca me
imaginei sem ele, o meu pai
Foi personagem essencial de muitas fotografias, as primeiras que me tiraram quando decidi nascer, que ainda conservo num velho álbum de folhas de cartolina negra. Fotografias minúsculas recortadas com perímetro ziguezagueante, coladas com cantinhos vermelhos, em que me pegava ao colo, fazendo-me parecer mais crescida, do que efectivamente era. Com dois meses parecia ter quatro ou cinco. Com chupeta, sem chupeta, de repas ruivas ao vento, fazendo caretas…. Sempre a preto e branco, não para fazer estilo, mas por incapacidade da máquina fotográfica daquela época… Sempre ao colo do sr. Quelhas, o meu querido pai.
Gostava
da voz dele, apreciava a sua agilidade, era um homem bonito e culto, lutador,
sensível, teimoso e resistente, a fragilidade era a sua força para criar
soluções, para ultrapassar barreiras. Chorava quando ria, exactamente como eu.
Usava mais os óculos na cabeça do que no nariz, exactamente como eu faço. Não
gostava de compromissos assumidos a longo prazo, porque mudava de ideias… gostava
de decidir na hora, olhem eu!
A
genética não falha nem mente, para o bem e para o mal.
Sinto-o
como o melhor pai do mundo, mas provavelmente teria os defeitos que todos têm.
Os meus olhos já mais maduros de filha caçula, protegida e mimada, continuam a
vê-lo como o melhor.
Quando
estava alegre, trabalhava assobiando. Assobiava muitas vezes a banda sonora dos
filmes dos anos 50. E cantava bem.
Sempre
o respeitei e sempre o admirei. Pus em causa muitas certezas que ele tinha, mas
foi a minha maior referência, quando era criança, quando cresci, quando já
pensava ser alguém sem o ser, e após ele faltar.
Raramente
me deu brinquedos, mas deu-me dois dicionários Lello Universal quase tão
pesados como eu (na época), cujas páginas separadoras coloridas, coloriram
muitas horas da minha infância - os serões monótonos do Inverno, as horas
desocupadas depois da escola, os fins de semana vazios de obrigações…
Deu-me
uma bússola, uma clarineta Honner, uns patins, um triciclo e um catálogo de
cores das tintas CIN…
Não
riam, porque eu gostei!
Não
me contou histórias de princesas e bruxas más, essa era tarefa da mãe …
Contou-me
histórias sobre o general Humberto Delgado, contou-me histórias de mineiros e
de explorações de volframite, contou-me histórias sobre as constelações,
contou-me histórias sobre Hitler e a resistência francesa, contou-me histórias
sobre escravos e heróis como Galileu e Nuno Álvares Pereira, contou-me
histórias de viagens… histórias vividas e recontadas na 1ª pessoa. Contava-me
sobre assuntos que lia na revista Reader’s Digest.
Também
gostava de rir, apresentou-me em sala de cinema, Cantinflas, Charlot, Sordi,
Fernandel e Louis de Funés.
Foi
ele que me levou a primeira vez, a um observatório do espaço, a um zoológico, a
um porto de mar, a um autódromo, a um teatro, a uma pedreira, a uma catedral, a
uma mina de água, a um museu, a uma fábrica, a uma fortaleza, a um pântano com
jacarés…
Não
riam, porque eu adorei! Aprendi até a subir a um edifício pelo lado de fora,
com andaimes obviamente.
Mostrou-me
casas, muitas casas…
Leu-me
jornais, as tiras do Ruca ficavam para a mãe, partes dos Lusíadas e leu-me
Saramago. Lia-me sempre algo do que estivesse a ler. Lia, contava e recontava,
porque isso o ajudava a reflectir.
Sempre
que eu me sentia entediada com a brincadeira das bonecas e das casinhas
ensinava-me a fazer muita coisa, outras coisas, coisas que não se ensinam às
crianças por mero preconceito idiota.
Foi
ele que me ensinou a articular conhecimento, ensinou-me a fazer paredes
assentando tijolos, tomando consciência que tudo o que é mal construído e não
tem boa fundação, cai.
Ensinou-me
a fazer vigotas de pré-esforçado, ensinou-
-me a trocar uma lâmpada, ensinou-me a esticar aço e a
fazer grampos, ensinou-me a juntar cimento com areia, ensinou-me a olhar o
granito, a descobrir a geometria talhada e a assinatura dos pedreiros, ensinou-me
truques para desenhar escadas em obra, ensinou-me os lagos e as montanhas,
ensinou-me a ganhar e a perder, ensinou-me a ser tolerante, ensinou-me a raiz
quadrada, ensinou-me a gostar de amarelo, ensinou-me a apanhar girinos nas
poças de água, ensinou-me a traçar circunferências em jardins e a fazer tiro ao
alvo, ensinou-me a não roubar ninhos, ensinou-me a amar a minha avó Felisbela e
a ouvi-la, ensinou-me a gostar de mangas, ensinou-me a andar na rua, ensinou-me a proteger
um camaleão e a construir um baloiço, ensinou-me a escolher e a colher
cogumelos, ensinou-me a compreender a trovoada, ensinou-me a dar nós,
ensinou-me os cuidados a ter com a electricidade, ensinou-me o nome das
ferramentas (alguns já esqueci), ensinou-me a respeitar os mais velhos,
ensinou-me a ter cuidados básicos de saúde, ensinou-me a educar a minha vertigem de estimação, ensinou-me a respeitar o mar e os
rios, ensinou-me a apreciar teatro, ensinou-me a importância das minhas raízes
e da família, ensinou-me a ter consciência social, ensinou-me o que era diplomacia, ensinou-me a ser
inquieta e a não saber esperar, ensinou-me a justiça, a honestidade e a
humildade, ensinou-me a autonomia, ensinou-me a ceder e a resistir, ensinou-me
a distinguir o bem do mal, ensinou-me o valor real das coisas,… ensinou-me a
pensar diferente,…
… ensinou-me
a liberdade.
Apesar
da minha formação profissional ser muito a continuidade da sua profissão, e de lhe
desagradar que eu fizesse um curso de pintura, pensando que serviria apenas
para mendigar (tinha razão), surpreendia-o a olhar atentamente para as minhas
pinturas, e dizia:
- As
tuas pinturas são melhores do que os teus projectos de arquitectura. Os
projectos são bons, mas a tua pintura é muito melhor.
Um
dia ele parte, após três meses do nascimento do meu filho, sem aviso, sem
preparativos, como ele gostava de fazer em muitas situações — a morte
inesperada, dura e irreversível.
Nunca
me imaginei sem ele.
Ficarei
só para sempre.
Publicado em "De cereja em cereja beijo o verão"
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